Porque carga de água vivemos tão mal? E, se vivemos tão mal, porque carga de água o medo de morrer é tão grande? Quantas pessoas felizes conheço? Porque será que para quase toda a gente o amor é uma questão de prazeres breves e localizados, como dizia, eu que detesto citações, a grande escritora Colette? Ontem, no restaurante onde jantei, uma mesa grande cheia de mulheres e homens: falavam, comiam, riam-se e estavam todos defuntos. Vontade de perguntar-lhes
– Sabem que faleceram?
Quando digo que falavam refiro-me a que falavam de outros defuntos que não estavam ali, criticavam cadáveres enquanto se decompunham. O mundo dos mortos está cheio de ressentimento e inveja, de crueldade desnecessária. Para quê? Tanta agitação, despeito, rivalidades, emoções minúsculas. No meio disto tudo sou um homem sentado a escrever, com os meus fantasmas em torno, vozes que me segredam, me gritam. E tenho pena das pessoas, acho que o meu sentimento mais fundo é ter pena das pessoas. No bairro onde moro e que não trocava por nenhum outro
(não é um bairro, é uma ilha em Lisboa)
fui fazendo amizade com criaturas extraordinárias, sem abrigo, doentes mentais, viúvos solitários, pequenos dealers, pequenos comerciantes, um grupo que se dedica a actividades que os jornais chamam marginais. Posso deixar as janelas e a porta abertas que ninguém toca em nada: existe um código de honra implacável, um curioso sentido da amizade e do respeito, uma hierarquia feroz. Violentos e sentimentalões, demorei tempo a entender as suas regras morais, que nada têm a ver com a moral corrente mas que são minuciosamente seguidas: já sentira isso de fora, na época em que frequentei cadeias, sinto agora por dentro. E aceito. Se for preciso defendo-os, do mesmo modo que me protegem a mim. E a pouco e pouco vou fazendo amizade com outros habitantes locais: mulheres de aluguer, travestis, os protectores de umas e outros, um carteirista de mais de setenta e cinco anos que recusa reformar-se, já a arrastar a perninha e todavia de olho vivo e palavra convincente. Antes de me mentir previne
– Eu a si não lhe minto
para que fique em acta que está a aldrabar. A nossa cumplicidade começou ao pifar-me cinquenta euros: nunca mos devolveu. Suponho que os considera a propina que lhe devia pelas aulas futuras. Se calhar virem à baila os cinquenta euros explica logo
– Isso foi antes
e considera o assunto resolvido, ou seja consideramos ambos o assunto resolvido. Aliás já me pagou mais que a nota em ice-teas e torradas. Avanço com o dinheiro e ele de mão no ar
– Está pago, não me ofenda
o fatinho coçado, a indignar-se. As mulheres de aluguer tão miseráveis quase, tão baratas: vinte euros é uma pechincha. Quanto aos travestis ainda não se descoseram comigo, cada qual com a sua zona de patrulhamento mesmo em dezembro,
à chuva, vestidos de Barbarella. Os clientes encostam o automóvel, os protectores
(– O meu marido)
vigiam o que é seu, paternais e duros, de bofetada eficaz. Na semana passada
– Não me batas mais, Aires
à segunda dose de correctivo, aplicada sem fúria, pedagógica. Nos intervalos da direcção do negócio jogam bilhar, arrumam os automóveis caros em cima do passeio, informam-se
– Como vamos de numerário, pequena?
eu que ignorava o seu conhecimento da palavra. Cumprimentam-me enquanto o travesti se justifica
– Desculpe não lhe ter dado as boas noites, senhor doutor
e regressam à sua actividade docente. Se mandassem nas escolas acabava a rebaldaria
– Se eu mandasse nas escolas acabava a rebaldaria
e não se alcança o motivo dos partidos não colocarem estes educadores não apenas à frente das escolas mas das diversas repartições do Estado. É impossível não lhes admirar a autoridade natural e o dom disciplinador. Um governo dirigido por rapazes de pulso entrava na linha num rufo e o País enchia-se de numerário, consideração pelo mando e automóveis caros em todos os passeios. Aposto que até a minha mãe aplicava umas carambolas com gosto em compartimentos onde o excesso de fumo torna as garrafas de cerveja invisíveis, percebendo-se vagamente a linha da espuma. Estou aqui a imaginá-la de cigarro na boca a dar giz ao taco, interrogando-me com bons modos
– Como vamos de numerário, pequeno?
pronta a um estalo rectificativo. Ou a jantar com os carteiristas nos sítios onde janto e em que o peixe é peixinho, o bife bifinho, as batatas batatinhas, mas a conta não continha, conta. E a bola na televisão, empoleirada numa prateleira junto ao tecto. A minha mãe beberia um uísquezinho em copo de balão no fim, servido acima do traço por ser para ela
– Acima do traço por ser para si
e a narrar os seus problemas existenciais às raparigas de vinte euros. E mais dia menos dia assaltava um bancozito ou preparava a furgoneta para uma caixa multibanco. Ao passar por ela justificava-se
– Desculpe não lhe ter dado as boas noites, senhor doutor
e continuava, debruçada para um capot, a dar potência às bielas, eficiente e manchada de óleo, tirando chaves inglesas da carteira onde descansavam na companhia de cartões de crédito falsos e de bilhetes de identidade artesanais. Desde criança que sonho ser filho de Calamity Jane.
"ainda estou para descobrir se você é um cabrão simpático ou antipático, mas pelo sim pelo não, cona da mãe"
ResponderEliminarAntónio Lobo Antunes, in Memória de Elefante